Ao ler o episódio dos discípulos de Emaús em Lc 24,13-35, vê-se que, segundo o Evangelho de Lucas, a vocação cristã consiste em caminhar atrás de Jesus rumo a Jerusalém (cruz!). Mas, os dois discípulos de Emaús, desiludidos, dão as costas a Jerusalém e regressam cabisbaixos ao seu lugarejo de origem. Na verdade, caminham à deriva como quem perdeu o rumo e o próprio sentido de caminhar. Esperavam que aquela Páscoa fosse ímpar, pois veriam a tão sonhada libertação de Israel, mas tudo terminou tragicamente antes mesmo da celebração da festa. O sonho acabou! Não há mais esperança! Por isso, caminhavam, com o rosto sombrio (Lc 24,17), conversando sobre o episódio do Calvário, quando Jesus mesmo se aproximou, mas eles não perceberam que era Jesus porque “os olhos deles estavam impedidos de reconhecê-lo” (Lc 24,16).
Abrir o coração e expor o que nos aflige é fundamental. É a condição para recomeçar, para retomar o ponto de onde nos extraviamos. Pelo simples fato de se deixarem envolver no diálogo com o Ressuscitado, mesmo relutantes e entediados, os discípulos de Emaús liberaram um canal pelo qual puderam ser resgatados do fosso em que caíram.
Com efeito, reconhecer o Ressuscitado é um ato de fé. Não basta o ver empírico! Também não é iniciativa humana. Não basta a força de vontade! Como a cena o demonstra, é o próprio Ressuscitado quem se aproxima dos discípulos para começar o diálogo e lhes pergunta sobre o que estão conversando. Eles reagem indignados. Como era possível que aquele forasteiro desconhecesse o que havia acontecido em Jerusalém, naqueles dias? Jesus não faz caso da resposta ríspida e repreensiva. Simplesmente insiste na tentativa de provocar o diálogo com aqueles discípulos decepcionados e amargurados. Pergunta-lhes: “O que aconteceu?”. Revelando profunda decepção, eles falam, quase a contragosto, da angústia que estão experimentando: “Nós conhecemos um homem em quem pusemos nossas esperanças. Pensávamos que ele fosse redimir Israel, mas nossos líderes o mataram há três dias. Por isso, estamos desiludidos, perplexos... Não sabemos o que fazer!”.
Abrir o coração e expor o que nos aflige é fundamental. É a condição para recomeçar, para retomar o ponto de onde nos extraviamos. Pelo simples fato de se deixarem envolver no diálogo com o Ressuscitado, mesmo relutantes e entediados, os discípulos de Emaús liberaram um canal pelo qual puderam ser resgatados do fosso em que caíram. De fato, enredando-os no colóquio, o Ressuscitado lhes faz entender que é necessário interpretar de outro modo os acontecimentos que eles estão vivendo. E, para isso, é necessária a mediação da Palavra reveladora, porém, com a interpretação que dela faz o Crucificado-Ressuscitado. Pois, a interpretação de que dispunham estava gerando a decepção que eles experimentavam. Então, enquanto caminha com os discípulos pelas estradas de Emaús, Jesus os conduz por um novo “caminho” de aproximação das Sagradas Escrituras. Começando por Moisés e passando por todos os Profetas, explicou-lhes, minuciosamente, a trajetória do Crucificado (cf. Lc 24,27). Portanto, é pelo fim que se explica o começo. O Crucificado é a chave para se entender corretamente a revelação contida nas Escrituras, desde os primórdios.
Envolvidos no diálogo com o forasteiro, os discípulos de Emaús chegaram aonde deviam: à casa. Já em certo grau de transformação, intuem que, doravante, a casa deles, mais que um lugar, é a companhia daquele que, ao longo do percurso, os guiou na interpretação da Palavra. Por isso, não hesitam em dizer-lhe: “Fica conosco!” Esse convite é mais do que a delicadeza da hospitalidade oriental. Com efeito, a ceia na casa, com a bênção e fração do pão, precedida pela interpretação da Palavra, evoca imediatamente a celebração litúrgica da comunidade cristã, em que se ouve a Palavra e se comunga do Corpo e do Sangue do Senhor. É, portanto, no contexto eucarístico que os dois discípulos puderam reconhecer o Ressuscitado. E, ao reconhecerem o Senhor no próprio gesto de Sua morte, eles encontraram resposta para o motivo que os distanciara de Jerusalém.
Mas, ao reconhecerem o Senhor, Ele desapareceu. Que foi? Uma aparição? Delicadamente, o Evangelho não afirma que aqueles dois discípulos “viram”, mas “reconheceram” o Senhor (Lc 24,31). O Ressuscitado não é mais visível porque não é aquele terceiro personagem do caminho. Os discípulos o experimentam Vivo na própria vida. O Sacramento nos permite reconhecê-lo não simplesmente como alguém fora de nós, que “se pode ver” e “tocar” tatilmente, mas como alguém que habita em nós e nos aquece o coração, como o Vivente que se faz visível pela escuta da Palavra e se deixa tocar no Sacramento, de que a Igreja é fiel depositária.
Certamente também nós, de alguma forma, nos encontramos na situação dos discípulos de Emaús, procurando caminhos e tentando reencontrar o rumo e o sentido do nosso caminhar. Quem de nós não sente o desafio de uma verdadeira conversão pessoal ao Evangelho? Quem de nós não tem dificuldades pessoais e familiares, às vezes, bastante sérias? O que dizer do complexo cenário mundial com tantas ameaças à paz entre os povos? O que pensar das intrincadas problemáticas nacionais com tantos problemas político-econômicos? Como responder à necessidade de políticas públicas na saúde, na educação e noutras urgências sociais? Como não ficar horrorizados diante da violência, principalmente nos grandes centros urbanos, que diariamente ceifa vidas inocentes de adultos e crianças? O que dizer do descaso com a preservação ambiental sacrificada à ambição de lucro a qualquer preço?
Em face de tantos desafios, corremos o risco de cair no mesmo equívoco dos discípulos de Emaús, pretendendo avaliar e enfrentar as circunstâncias unicamente à luz de nossas compreensões e expectativas e, assim, sermos submergidos pela decepção e desânimo. Nesse sentido, essa passagem evangélica nos ilumina de modo ímpar. Os discípulos de Emaús superaram o beco sem saída em que se encontravam dando ouvido à Palavra Revelada interpretada pelo Cristo Crucificado-Ressuscitado. Ser cristão não é simplesmente ter iniciativas próprias, por mais eficientes que sejam; ser capaz de uma interpretação pessoal das Sagradas Escrituras, por mais plausível que seja. Ser cristão é seguir Jesus Cristo. Somente a trajetória de Jesus interpreta autenticamente as Sagradas Escrituras. Por isso, Evangelho é essencialmente Sua Pessoa. Somente Ele é capaz de nos abrir novos horizontes.
Sem dúvida, não podemos nos isentar de nossa responsabilidade, empenho e compromisso. Porém, diante de realidades e situações de difícil solução, vamos cuidar para não perder o horizonte da fé e orientar o nosso caminho não por nossas “possibilidades” ou “impossibilidades”, mas pelo Senhor mesmo que é parceiro e guia capaz de nos abrir caminhos e dar sentido ao nosso itinerário (cf. Lc 24,30-32).
Observemos que os discípulos de Emaús só superaram a dificuldade no fim da caminhada. Eles não foram “forçados” pela autoridade, nem persuadidos por argumentação sutil, nem seduzidos pela propaganda. Eles foram iluminados pela Palavra e começaram a perceber o que antes não percebiam. Foi o próprio percurso com o Crucificado-Ressuscitado que lhes reascendeu o ardor do coração e fez reaparecer o sentido do caminho. Certamente, foi um processo difícil e doloroso para eles. Mas valeu a pena!
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