João aparece como porta voz dos discípulos para coibir um exorcista autônomo que expulsava demônios em nome de Jesus. Os termos do motivo da proibição: “porque não nos seguia” soam estranhos, pois, em tal caso, se esperaria uma formulação assim: “porque não segue a ti”.
Portanto o comportamento de João, compartilhado pelos demais, evidencia, mais uma vez, a dificuldade de os discípulos entenderem a mensagem de Jesus. Repare-se que não somente disputam entre eles o primeiro lugar (cf. Mc 9,34), como também pretendem assegurar-se privilégios corporativos de grupo.
Com o relato, o evangelista pretende levar seus ouvintes a se reconhecerem nos discípulos, exortando-os à atenção para não se deixarem dominar pela tentação do egoísmo individual e grupal extremamente pernicioso, porquê de um lado, impede o acesso “dos de fora” à mensagem do evangelho e, de outro, o fechamento em si mesma leva a comunidade cristã ao apodrecimento, pois já não tem em si o sal que a conserva (cf. Mc 9,50), ou seja, o testemunho do evangelho que a faz permanecer comunidade de Jesus.
A promessa de recompensa para quem der um copo de água é dirigida a quem presta serviços humildes que permanecem escondidos no silêncio, incógnitos na rotina diária. Na experiência do Evangelho, o que importa não é o efeito sensacional, o ibope alcançados pelo impacto de determinada ação, mas o teor de amor contido naquilo que se pratica, mesmo que seja um gesto insignificante como oferecer um copo de água a um sedento.
Em seguida, fala-se do escândalo aos “pequeninos que creem” (Mc 9,42). Trata-se do obstáculo colocado à fé e à comunhão dos irmãos mais frágeis na comunidade cristã, seja pela sua condição de iniciante recém-convertido ou por outra razão.
O mau exemplo de membros influentes, que detêm certo prestígio e, sobretudo se exercem funções na comunidade, pode levar ao abandono da fé aqueles que nela ainda não se consolidaram.
A imagem chocante de que a quem provoca o “tropeço na fé aos pequeninos” seria melhor lhe fossem amarrada uma pedra de moinho ao pescoço e atirados ao mar visa a despertar os inconscientes e insensatos, e mobilizá-los a uma mudança imediata de atitude.
Ser cristão implica uma exigência solidária. Portanto, não há mais diferença entre privado e comunitário. Pecados pessoais, aparentemente particulares podem atingir a comunidade. Assim, conduzir uma vida de conversão não é só uma questão pessoal, mas também uma responsabilidade social.
Na sequência (Mc 9,43-48), retoma-se o tema do escândalo, porém com um matiz diferente. Não se trata mais do escândalo que uma pessoa pode ocasionar a outra, mas o que nasce da concupiscência própria.
Ao relacionar essa cobiça com dois membros ativos do corpo humano (mão e pé) e com um receptivo (olho) se está pressupondo a concepção judaica segundo a qual os instintos humanos têm sua sede nos órgãos.
É necessário notar que ao interpretar esse texto, muito sério, deve-se cuidar para não cair em três equívocos. Primeiramente, os escândalos provenientes das partes do corpo humano não se limitam ao instinto sexual. Com efeito, o livro do Eclesiástico fala de olhos altaneiros, insaciáveis (Eclo 6,17; 27,20) e de mãos que derramam sangue inocente (Eclo 6,18). Em segundo lugar, deve-se ressaltar que os duros imperativos não ensinam o desprezo do corpo. Não se pode tomá-los ao pé da letra, embora em épocas posteriores tenham sido entendidos dessa maneira. Inclusive há registros históricos de que algum cristão renomado mutilou-se para vencer as concupiscências carnais. Porém, o texto não quer dizer isso. Com suas imagens fortes e impressionantes visa mover o fiel a uma ação decidida contra o mal, o que implica uma transformação completa de seu ser. E para isso não basta apenas decepar partes do próprio corpo, pois alguém poderia até mutilar-se completamente e ainda assim permanecer sem conversão real ao evangelho.
Por último, deve-se ter presente que essas sentenças querem afirmar que a novidade do Evangelho não consiste em propor uma nova concepção do além, mas em dar, por meio da Palavra e da atuação de Jesus, um novo alicerce ao empenho de viver o aqui, onde vai ser decidido o destino definitivo do ser humano perante Deus.
Marcos transmitiu esta sequência de pronunciamentos do Senhor completando o ensinamento aos discípulos, começado em 9,33-37. A intenção é clara: os discípulos, no seguimento de Jesus que se encaminha à Paixão, devem estar dispostos a lutar de maneira decidida contra o mal, a evitar o escândalo custe o que custar, a aceitar a renúncia e o sacrifício pessoais. E isto não tanto para uma ascese orientada à própria pessoa, quanto para que se fortaleça a comunhão dos discípulos.
As discussões sobre a ordem hierárquica, o afã de privilégios, os escândalos, o desprezo aos que estão em condição inferior, ameaçam constantemente esta comunhão. O mandamento final de manter a paz (cf. Mc 9,50) significa ajudar a superar todas as ameaças. Isso se realiza com a força daquele espírito que quer servir, com a força do espírito de Jesus.
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